Vende-se fiado! Não é pipoca, não é churros!
11:01
Por Brenda Fernández
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História Ambulantes Foto: Rayana Garay/ProjetoFragmentado |
É muito comum entrar em bares, botecos ou passar por carrinhos de vendedores ambulantes e ver placas informando "Não vendemos fiado. Volte amanhã!". Mas na última quarta-feira (02), enquanto passeávamos pelo Parque da Redenção, nos deparamos com os seguintes dizeres "Vendemos Fiado!". Curioso não? Diante da placa estava estacionada uma carroça muito atrativa. Chegando lá, analisamos cada detalhe e questionamos sobre o que se tratava tal trabalho. A mentora desse projeto, Ana Flávia Baldisserotto, começou a explicar:
O COMEÇO
O projeto começou com uma vontade minha de trabalhar na rua e com o gosto de querer ter uma carroça. Ter uma boa desculpa para encontrar as pessoas que a gente não encontraria normalmente pelos circuitos da vida cotidiana e criar relações com elas. O projeto Histórias Ambulantes começou com as artes visuais em uma exposição de artes que iria acontecer na Usina do Gasômetros há alguns anos atrás, em 2007. Então pensei que ali, na Orla do Guaíba, seria um bom lugar para colocar em prática o projeto, fazer o teste. Propus colocar a carroça dentro da galera e uma vez por semana tirar e colocar na rua para se juntar aos diversos ambulantes que ali já existiam. Como era um espaço que acontecia muitas vendas e interação entre ambulantes, achei que ali seria o lugar ideal para a descoberta. Deste modo fizemos a primeira experiência em 2007 e depois paramos por um tempo por questões pessoais. Em 2011 surgiu uma nova oportunidade com a mesma modalidade e com uma carrocinha nova. Participei de uma exposição no MARGS (Museu de Artes do Rio Grande do Sul) que possibilitava que eu saísse uma vez por semana com o projeto. Uma vez por semana saíamos para a Praça da Alfândega. O grupo sempre foi composto de alunos, amigos e voluntários que tinham disponibilidade para se dedicar ao projeto. Na Praça da Alfândega então se confirmou de que esse trabalho podia render muito. E lá eu percebi que precisava fazer o que todo comércio faz: o ponto. As pessoas precisam entender que aquilo ia estar lá regularmente durante muito tempo. Tinham que saber que o projeto ia acontecer se nos buscassem, pois as exposições de artes são intermitentes durando um mês, no máximo dois meses. As minhas saídas aconteciam com a freqüência de exposições, até eu perceber que podia acontecer uma coisa muito legal se eu continuasse frequentando um mesmo local,na rua, que era a relação com as pessoas que voltavam sempre, que saiam da carroça pensando que não tinham nada para dizer naquele momento, mas sabiam que podiam voltar outro dia. A essência do trabalho era essa relação. Pensei no que podia fazer para que essa relação continuasse. Paramos novamente por um ano o Histórias Ambulantes para estruturar um projeto e pensar numa forma de colocar ele em circulação. Eu propus então como local a Redenção e desde março do ano passado viemos uma vez por semana. Mas esse ano estávamos vindo quinzenalmente e estamos tendo uma relação com o parque muito legal. Como professora de Artes de uma instituição da Prefeitura de Porto Alegre, chamada Ateliê Livre, eu consegui que a escola apoiasse o nosso projeto, fazendo dele uma oficina de rua. É uma oficina aberta, não estou aqui como professora, mas sim como ambulante.
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Vende-se fiado Foto: Rayana Garay/ProjetoFragmentado |
A proposta é uma troca sensível pela escrita e pela fotografia. A relação que a gente faz tem um caráter de aproximação com o campo da arte. O Histórias Ambulantes é uma espécie de oficina bem aberta que traz um público que normalmente não frequentaria uma oficina de artes em uma instituição comum, mas que aqui a gente troca com coisas que temos em comum. Todo mundo usa da escrita nem que seja para lista de compras, ou lança a mão da escrita de uma maneira sensível quando escreve uma carta, um bilhete. Algumas pessoas não tem pretensão de ser escritoras, mas escrevem poemas, contos ou diários. Tem uma relação com a escrita que envolve a sensibilidade. A maioria das pessoas hoje também fotografa com celulares. A gente lida com o fragmento do sensível sendo a pessoa adotando isso pra vida ou não. De certa maneira o trabalho atiça essa parte, de ver, de entender como funciona a estética de arte. A gente tem toda essas camada, desde a parte da disponibilidade desses encontros, de sair, até esse aspecto de suscitar essa vontade com as línguas que temos ao nosso alcance, como a escrita e a fotografia, como uma forma de se comunicar, se expressar de maneira sensível.
OS ENVOLVIDOS
A equipe de Histórias Ambulantes é composta de professora, alunos, amigos e voluntários. O Projeto está sempre aberto a novas colaborações. Importante dizer que o projeto recebe não só histórias de quem interage na rua, mas também de quem se sentir a vontade para o desapego de histórias guardadas em gavetas e fotografias avulsas.
A RECOMPENSA
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Sobre um outro olhar Foto: Rayana Garay/ProjetoFragmentado |
Tem também pessoas que interpelam com perguntas, que querem entender a partir do seu universo o que é esse tipo de negócio. Enfim, cada pessoa tem algo muito único e é isso que torna fascinante e vivo o nosso trabalho. Depois de tantos anos, vir pra rua é sempre uma surpresa, uma aventura, sempre dá aquele frio na barriga, pois não sabemos quem vamos encontrar. Às vezes é surpreendente passar a
tarde no parque e não ter nenhum cliente, como já aconteceu. É tardes que passamos horas sentadas no parque observando a vida passar, o que acontece quando não acontece nada. O projeto Histórias Ambulantes é essa novidade constante, é um trabalho de muito fluxo.
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Carrocinha Foto: Rayana Garay/ProjetoFragmentado |
Ao longo deste trabalho teve uma história dentre todas que nos surpreendeu profundamente. Não sei se foi por ser a primeira, por ter um sentimento novo de tudo aquilo. Na primeira vez que saímos para a rua, em março, a primeira pessoa que se aproximou na tentativa de se informar, fazer perguntas, enfim, se localizar, foi um homem de trinta e poucos anos que carregava uma caixa de chocolates que estava vendendo. Começamos a conversar e criamos uma relação de ambulante para ambulante. Depois de explicarmos como funcionava nosso projeto, o convidamos para contar uma história. Ele no ato aceito, e a história que ele nos contou foi de como ele foi de Porto Alegre a Florianópolis a pé. A história tratava de uma aventura que começou com quatro amigos, depois dois se perderam no caminho, e após trinta e nove dias chegaram ao destino. Foi uma história muito marcante, cheia de detalhes ricos, que tinha uma semelhança da mobilidade. Em especial, dentro da história dele havia duas histórias fascinantes. Uma delas aconteceu em um restaurante de beira de estrada aonde eles chegaram sem dinheiro algum. Chegando lá, eles pediram se havia alguma coisa para ele e o companheiro comerem. E depois de eles serem questionados por estarem lá, foram convidados para entrar no restaurante, sentarem em uma mesa e foram surpreendidos por um banquete de churrasco com espeto corrido e tudo mais que estava sendo oferecido naquela noite. Só que eles estavam com medo de comer, porque pensavam que não tinham entendido que eles não tinham dinheiro e que depois da farta comilança iam ser cobrados. Com um pouco de constrangimento nas palavras eles tentaram explicar que não tinham dinheiro, que eram andarilhos. O funcionário do restaurante disse a ele que depois explicava o verdadeiro motivo de estar fazendo aquilo, mas que por hora eles apenas comecem. Depois de uma longa refeição, prepararam-se para ir embora e ainda levaram comida para a viagem, mesmo sem entender o que estava realmente acontecendo. Para saber a explicação de tudo aqui que estava acontecendo eles tinham de esperar até o fim do expediente, ou então podiam ir embora sem saber. Eles esperaram. E a explicação era que o dono do restaurante tinha sofrido há algum tempo atrás um acidente na estrada onde o carro capotou, e quem socorreu ele naquele momento foram dois andarilhos que tirara ele de dentro do carro cinco segundos antes do carro explodir. E a partir daquele momento a forma de ele retribuir por essa graça foi receber e servir com a melhor comida todas as pessoas que viessem pedir comida naquele restaurante. Não importava como ela chegasse e nem como ela estava vestida, todos seriam recebidos. E os funcionários não podiam de forma alguma questionar. Se quisessem saber o motivo tinham que esperar até o final do expediente para falar com o dono. Essa foi a história mais emocionante até hoje.
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Frequeses Foto: História Ambulantes/Divulgação |
No início recolhíamos apenas histórias contadas, mas hoje, percebemos que existem muitas pessoas que preferem se expressar pela escrita, então adotamos receber histórias no papel também. Cada vez mais está aumentando o público que chega aqui e pega o bloquinho e senta no banco e começa a descrever de
maneira tranquila o seu conto. Não temos nenhuma rigidez e sim uma abertura. Surgiram diversas pessoas aqui na Redenção com instrumentos musicais que vieram nos perguntar se podia contar a sua história através de uma música. Foi lindo!
MERCADORIA FIADA
Nós vendemos fiado em várias modalidades: à vista quando é contado pessoalmente; por cartão de crédito é por escrito; parcelado quando é um pouco de cada vez; e fiado é para quem não tem nada para contar, está sem idéias, então é um voto de confiança. Vai e volta, é um convite para pessoa levar e depois voltar e deixar algo. Essa é a nossa ideia. Por isso vendemos fiado, a pessoa pode chegar aqui deixar uma conversa fiada e está tudo bem. (Risos).
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Envelope nº 24 agora faz parte do mural do Fragmentado Foto: Brenda Fernández/ProjetoFragmentado |
Para conferir um pouco mais de Histórias Ambulantes, confira a baixo o blog e a página no face do projeto:
Histórias Ambulantes no Facebook
Histórias Ambulantes no Blog
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